A secretária nacional de Mulheres do PT, Anne Moura, afirmou que comitês de cultura, criados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pela ministra da Cultura, Margareth Menezes, foram utilizados para eleger aliados em 2024. Segundo Moura, essa prática contou com o aval da cúpula da pasta. Ela declarou que “quem foi para a frente da Prisão” merece atendimento diferenciado na “parte boa”. O Programa Nacional de Comitês de Cultura (PNCC), criado em setembro de 2023, destina R$ 58,8 milhões para ações de mobilização, apoio e formação de artistas até o final deste ano, sendo uma das principais iniciativas do Ministério da Cultura (MinC).
As declarações, que datam de setembro do ano passado, ocorreram em uma reunião com o então chefe do comitê do Amazonas, Marcos Rodrigues, com quem Moura rompeu politicamente no fim do ano. A conversa foi gravada e registrada em cartório, com acesso concedido ao Estadão.
Em nota, Anne Moura alegou que seus questionamentos à atuação do ex-presidente do comitê cultural podem ter sido tirados de contexto e que ele busca prejudicar sua imagem. O Ministério da Cultura refutou o relato sobre a atuação de servidores, afirmando que o comitê do Amazonas teve suas atividades suspensas e recursos bloqueados para apuração de irregularidades.
Exigências de Apoio Eleitoral e Críticas à Gestão
Na gravação, Anne Moura pressionou Marcos Rodrigues a envolver a estrutura do comitê em sua campanha para vereadora em Manaus, candidatura que não foi eleita. A falta de empenho do comitê amazonense na esfera política foi considerada “um absurdo” por Roberta Martins, secretária do PNCC no MinC e membro do PT do Rio de Janeiro. Moura também reclamou da escolha de artistas para atividades sem consulta política prévia, alegando ter levado sua insatisfação ao secretário-executivo da pasta, Márcio Tavares, que ocupava um cargo de igual hierarquia ao de Moura no partido.
“Marcos, quando eu fui lá no MinC agora, da última vez, o pessoal me perguntou: ‘Anne, o comitê tá te ajudando?’ Eu disse: não, Roberta, não tá. Ela estava na sede do PT, na reunião e perguntou: ‘o comitê tá te ajudando? Porque nos outros lugares está tudo ajudando’. Porque eu fui pedir dinheiro também, tô pedindo ajuda para ganhar a eleição. Aí ela disse, o comitê tá te ajudando com alguma coisa nas agendas, nas atividades? O comitê não pode te dar dinheiro, mas eles podem promover atividade para te ajudar. Eles estão te ajudando?’. Eu disse: ‘Roberta, deixa eu falar uma coisa para ti. Temos acordos que não foram cumpridos. E depois que as pessoas sentaram na cadeira pagaram de doidos. Eu decidi que não vou me estressar com isso agora. Eu preciso ganhar a eleição. Então se tu puder me ajudar agora, daqui, na articulação tua e do Márcio, eu te agradeço. Depois, quero sentar e conversar com você sobre isso’”, disse Moura na gravação.
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O PNCC contrata entidades culturais para coordenar ações de fomento à cultura nos Estados. Conforme revelado pelo Estadão, a iniciativa beneficia militantes do PT e ONGs ligadas a assessores do ministério. No Amazonas, o Instituto de Articulação de Juventude da Amazônia (Iaja), fundado por Anne Moura e com Ruan Octávio da Silva Rodrigues (PT) como um de seus diretores, foi selecionado para receber R$ 1,9 milhão em dois anos para a coordenação do comitê. Ruan Octávio, aliado de Moura em Manaus, hoje coordena o escritório do MinC no estado.
Influência Política e Conflitos no Amazonas
O Ministério da Cultura afirma que a seleção das ONGs se baseia em capacidade técnica e qualificação profissional. No entanto, as declarações de Anne Moura na gravação sugerem influência política e partidária na escolha, indicando que a aprovação do Iaja no Amazonas ocorreu sob sua pressão.
”Eu disse [para Roberta]: ‘pois é. Eu não sou de levar problema. E eu tô batalhando a minha batalha. Quando acabar, vou vir aqui, com o coordenador, com todo mundo que precisa ser respaldado. E eu quero pedir que vocês vão lá no Amazonas para botar cada um no seu lugar. Quero que tu diga da tua boca que fui eu que vim aqui pedir para ser aprovado o Iaja. Eu quero que você fale para eles lá. Porque as pessoas estão o tempo todo dizendo que não foi (…) Ela disse: ‘Isso é um absurdo, Anne. A gente faz política. Isso é um absurdo’. Pois, é. ‘Eu quero te pedir esse favor’.
Ela disse: ‘a hora que você me ligar eu vou até o Amazonas e converso com o comitê. A gente não faz coisa solta não. A gente não faz isso’. Aí ela me mostrou os mapas dos comitês. ‘Os comitês, aqui, ó, no Brasil todo, tão articulados com nosso povo. Isso aqui foi uma estratégia organizada com o presidente Lula. A principal pauta que a gente levantou, através da própria Janja… por isso que o Márcio é executivo do ministério, e é inaceitável que isso esteja acontecendo’. Eu chorei, ela chorou.”
Anne Moura também ameaçou intervir no órgão de cultura do Amazonas devido ao protagonismo de André Guimarães, assessor de projetos do comitê e militante do PSOL. Ela expressou indignação pela não predileção por “artistas parceiros escolhidos na política” e pela participação de Wanda Witoto (Rede) em um ato público do comitê, considerando a rivalidade eleitoral entre elas.
”Mas independente do resultado, nós vamos sentar e fazer um freio de arrumação. O comitê não é do André, Marcos. Mas hoje toda a cidade de Manaus está dizendo que o comitê é do André, embora quem coordene a instituição seja nós. (…) Quero descer o ministério aqui, pessoas que são meus amigos do peito uma vida toda. Quero que cheguem e digam para o André o que é e o que não é. Sabe por que, Marcos? Não quero que o comitê deixe de fazer o que tá fazendo, porque eu acompanho. Tá legal. Mas o comitê dar o microfone na mão da Wanda para ela falar e dizer que isso não tem a ver com a política? (Anne, mas o comitê não deu o microfone…) Vocês escolherem artistas sem combinar na política quem são os artistas parceiros….”, afirmou.
Moura, que recebeu R$ 428,4 mil do PT em sua campanha, obteve 2.399 votos. Wanda Witoto recebeu R$ 396 mil da Rede e 8.374 votos, insuficiente para a eleição em Manaus.
Para Anne Moura, o foco da política pública do comitê deveria ser os aliados do PT como retribuição pela defesa de Lula durante seu período de prisão na Operação Lava Jato. “Mas é o seguinte, Marcos: quem foi lá para frente da prisão gritar de manhã, de tarde e de noite para defender o Lula fomos nós. Nós que sofremos sendo chamados de ‘ladrão’, todo mundo virou as costas para nós nos movimentos sociais. E a gente lá ‘somos do PT, vamos resistir, vamos não sei o quê…’. E agora, chega na parte boa, a gente vai ficar olhando as coisas acontecendo? Não vamos ter nenhuma opinião política nesse processo? Tudo tá de pé pela política. Só tem comitê porque tem Lula. E só tem Lula porque tem base, que somos nós. É inaceitável o que tá acontecendo, mas eu vou lutar uma luta de cada vez.”
Comitê Ignorou Orientação do MinC e Fez Campanha para Dirigente do PT
Apesar das queixas de Anne Moura sobre a falta de “ajuda” do comitê de cultura, o órgão endossou sua candidatura em postagens nas redes sociais, republicando material de campanha. Essa iniciativa violou uma orientação expressa da diretora de articulação e governança da pasta, Desiree Tozi, que proibiu publicações com preferências político-partidárias ou promoção pessoal de candidatos.
Marcos Rodrigues foi desligado da presidência do Iaja em dezembro de 2024, acusando Anne Moura de usar a estrutura para fins políticos. Moura, por sua vez, alega ter sido vítima de calúnia, difamação e ameaças virtuais por Rodrigues, com quem rompeu após conflitos no Amazonas.
Em sua defesa, Anne Moura declarou que desconhece o teor da gravação e que suas falas podem ter sido tiradas de contexto, buscando macular sua imagem por motivações pessoais. Ela reafirmou sua tranquilidade em prestar esclarecimentos e sua dedicação de mais de 20 anos à luta popular sem envolvimento em ilicitudes.
A atual presidente do Iaja, Samara Pantoja, disse desconhecer o compartilhamento de material de campanha de Anne Moura na página do comitê.
Ministério da Cultura Nega Conversa e Suspende Comitê no Amazonas
O Ministério da Cultura negou que Anne Moura tenha tido conversas com servidores da pasta sobre a seleção da ONG Iaja e afirmou que ela não tem relação com o processo. Em nota, o ministério declarou que a secretária do PT não é membro do comitê do Amazonas e não participou de qualquer processo relacionado à seleção.
A pasta minimizou os vínculos políticos de Moura com o Iaja, apesar de ela ser fundadora da ONG e ter influência sobre ela, além da relação com Ruan Octávio, que coordena o escritório do MinC no Amazonas e foi diretor do Iaja. O ministério também destacou que os comitês são instruídos a não se envolverem em campanhas eleitorais, defendendo a conduta técnica baseada na declaração de Moura sobre a falta de apoio do comitê.
Diante de denúncias e de um relatório parcial, o Ministério da Cultura abriu uma apuração sobre os trabalhos do comitê do Amazonas. Em fevereiro, decidiu pela suspensão temporária das atividades e pelo bloqueio de recursos, enquanto a investigação prossegue. “Medidas serão tomadas nos próximos dias com o objetivo de assegurar a transparência e a boa gestão dos recursos públicos, além de garantir que as atividades do comitê ocorram de forma impessoal, eficaz e eficiente”, ressaltou a pasta.
Sobre a alegação de Moura de que os comitês precisam contemplar “artistas parceiros combinados na política”, o ministério respondeu que a seleção dos grupos culturais é feita de forma autônoma pelos comitês estaduais, respeitando a diversidade e as especificidades regionais.
Comitês de Cultura: Promessa de Campanha e Discurso de Lula
O presidente Lula anunciou a instituição de comitês de cultura nos Estados durante a pré-campanha eleitoral de 2022, com o objetivo de democratizar o acesso à cultura e a participação social. Após sua eleição, em outubro do mesmo ano, reforçou a ideia em discurso, visando a recuperação do Ministério da Cultura e a transformação da cultura em uma indústria geradora de empregos e renda.
Em março do ano passado, Lula mencionou o tema na abertura da 4ª Conferência Nacional de Cultura, em Brasília, afirmando que cobrava Margareth Menezes sobre os comitês para “enraizar aquilo que a gente acredita no meio do povo”.
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Fonte: Estadão