A criatividade em organizações pode, paradoxalmente, se tornar um sintoma de resistência, especialmente quando profissionais especializados em desbloquear outras empresas se veem paralisados em suas próprias ideias. Este fenômeno, explorado na segunda parte de uma trilogia sobre fidelidade e transgressão, mergulha nas complexidades da inibição criativa.
Dois sócios de uma consultoria organizacional enfrentam uma situação de perplexidade. Apesar de uma relação societária sólida e compartilhamento de valores, há meses a dupla não consegue tirar ideias do papel. Uma sucessão de tentativas abortadas, onde centelhas criativas morrem antes de se concretizarem. O cenário não indica Falta de capacidade ou recursos, mas sim um impedimento sutil e perturbador de levar a criação adiante, um quadro que a psicanálise identificaria como “inibição”.
O Paradoxo da Resistência Organizacional
É irônico que profissionais que diagnosticam e resolvem resistências em seus clientes se tornem eles mesmos reféns de suas próprias barreiras. A psicanálise e as abordagens sistêmicas alertam que o sintoma, ou a resistência, frequentemente retorna onde menos se espera. A consultoria, especializada em identificar bloqueios, vive sua própria paralisia sistêmica, sinalizando algo que não pode ou não deve ser visto.
Fidelidade Invisível e o Gozo da Impotência
A sucessão de ideias abortadas pode indicar uma lealdade inconsciente a algo que seria transgredido caso as ideias se materializassem. Talvez os sócios sejam fiéis a uma imagem de “consultores cuidadosos”, e o risco do fracasso público os impeça de avançar. Outra possibilidade é a lealdade à fantasia de uma “ideia perfeita”, que, enquanto potencial, permanece intocada. A execução, por outro lado, submete a ideia ao teste da realidade, onde a perfeição idealizada raramente é alcançada.
Jacques Lacan apontou que, por vezes, há um gozo na própria impossibilidade. A paralisia criativa pode manter os sócios em uma posição de eterno potencial, protegidos da “castração” que toda materialização implica. Essa dinâmica pode levar organizações a se especializarem inconscientemente em abortar inovações, transformando o que chamamos de “perfeccionismo” em uma Defesa contra a angústia de descobrir limites.
A Transgressão Necessária para a Inovação
A saída desta paralisia pode exigir uma transgressão: a “traição” à imagem idealizada. Os sócios precisariam ser infiéis à fantasia de perfeição para serem fiéis ao próprio desejo de criar e impactar. Aceitar que toda materialização é uma “traição” ao ideal é o que permite o nascimento de algo novo. Para a consultoria, a transgressão necessária seria executar uma ideia imperfeita, arriscar-se ao julgamento e expor-se à possibilidade do fracasso.
A paralisia pode ser ainda mais profunda, representando uma resistência não ao fracasso, mas ao sucesso, e uma lealdade oculta a uma posição de “underachievers” sofisticados. A obtenção do sucesso poderia forçar uma reestruturação completa da identidade, algo que os sócios podem ainda não estar prontos para abandonar.
Reflexão Sistêmica e o Ato Criativo
Para consultores e profissionais criativos, a questão é: a que se é leal – às ideias ou às resistências? Que versão de si mesmo está sendo protegida ao abortar projetos? O que seria necessário transgredir para que a criatividade flua?
Organizações devem questionar como lidam com a tensão entre inovação e risco de fracasso, e quais narrativas premiam a paralisia sofisticada. Líderes, por sua vez, precisam distinguir entre prudência e paralisia, e identificar quando ideias ideais impedem a ação.
A passagem da potência ao ato implica perda, a da onipotência imaginária, mas é essencial para o encontro com o Real. Ideias que permanecem no papel preservam pureza à custa de sua potência transformadora. A verdadeira transgressão é aceitar que toda criação é imperfeita, e que essa imperfeição é o preço e a beleza do que é vivo.
No próximo texto, a trilogia abordará como a busca corporativa pela felicidade dos colaboradores pode se tornar uma armadilha que impede vínculos autênticos e o crescimento genuíno.
Fonte: Estadão