Decisões judiciais baseadas no Código de Defesa do Consumidor (CDC) estão gerando incertezas e dificuldades para empresas do setor de loteamentos. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisou um caso em que um consumidor desistiu da compra de um imóvel e solicitou a aplicação do CDC, buscando a devolução de 90% dos valores pagos. O STJ, contudo, limitou a retenção da empresa a 25% do montante pago pelo comprador, sinalizando uma disputa entre legislações.
No Brasil, duas leis principais regem o tema: o CDC, de 1990, e a Lei do Distrato, promulgada em 2018. Anteriormente à Lei do Distrato, a ausência de regras claras levava cada caso a ser decidido individualmente pela Justiça. A Lei do Distrato estabelece que, em caso de desistência, a empresa pode reter entre 25% a 50% do valor pago, destinando o restante ao comprador. Essa porcentagem visa compensar custos como infraestrutura (água, luz, asfalto) e a impossibilidade de comercializar o imóvel durante o período.
O cerne da questão reside no fato de que, em diversos tribunais brasileiros, os juízes têm priorizado o CDC, permitindo que consumidores recebam de volta até 90% do valor pago. Essa divergência foi tema central em um painel durante o Fórum Estadão Loteamento Urbano e Segurança Jurídica, realizado em São Paulo.
Crítica à Redação da Lei do Distrato
O desembargador Francisco Eduardo Loureiro, corregedor-geral da Justiça de São Paulo, apontou a redação da Lei do Distrato como um possível fator para a adoção preferencial do CDC pelos magistrados. Ele criticou a lei por ser uma “colcha de retalhos”, perdendo a tecnicidade de seu projeto original durante o processo legislativo. Loureiro ressaltou que a lei estipula apenas “multas máximas”, abrindo margem para interpretação judicial e redução quando consideradas desproporcionais ao prejuízo real do empreendedor.
Conforme o Código Civil, o juiz tem a prerrogativa de reduzir a multa para evitar que o contratante se beneficie do próprio descumprimento. A ideia é que, em caso de término contratual por inadimplência, as partes retornem ao estado anterior.
Impacto Financeiro no Setor de Loteamentos
Caio Carmona Cesar Portugal, presidente da Associação das Empresas de Loteamento Urbano (Aelo), alertou para o impacto financeiro desse cenário no setor. Ele comparou a situação com a compra de veículos financiados, onde o cliente que não pode pagar devolve o carro e recebe a diferença. No entanto, quando o Judiciário obriga a devolução de 80% a 90% ou mais do valor pago pelo cliente, isso descapitaliza as loteadoras, aumenta o risco operacional e, consequentemente, encarece os terrenos. Luis Paulo Germanos, sócio do escritório Germanos Advogados Associados, reforçou que a necessidade de “guardar” o capital que pode ser requisitado a qualquer momento impacta a indústria de loteamento e eleva o preço final.
Dados recentes do primeiro trimestre indicam um crescimento de 15% nas vendas de lotes, contrastando com uma queda de 4% no número de loteamentos. Essa dinâmica, segundo Robinson Silva, gerente sênior da Tendências Consultoria, sugere um setor que está encarecendo e encolhendo. A Aelo atribui essa desaceleração à judicialização dos rompimentos de contrato, que força as empresas a devolverem a maior parte do dinheiro pago pelos clientes.
Perspectivas Futuras e Judicialização
O debate sobre a aplicação das leis em casos de distrato imobiliário ainda promete gerar muita discussão nos tribunais. Floriano de Azevedo Marques Neto, ministro do TSE, previu que o tema continuará a ser debatido no STJ e, possivelmente, no Supremo Tribunal Federal (STF). Enquanto isso, a sobrecarga nos tribunais com processos de revisão de multas e devoluções persiste, um problema que, segundo o desembargador Loureiro, poderia ser evitado com uma lei mais clara.
Fonte: Estadão