A Memória humana tende a apagar tanto os bons quanto os maus momentos. A pandemia de Covid-19 já parece distante, um evento do passado. Curiosamente, durante seu auge, havia uma esperança coletiva de que a humanidade emergiria mais fraterna e solidária. Essa visão, no entanto, mostrava-se ilusória para quem desconhece a natureza humana.
Epidemias, contudo, não são novidade no Brasil. Em março de 1889, um surto severo de febre amarela assolou o país, causando alarme e terror, especialmente em Campinas, um centro próspero.
Para gerenciar essa crise, um grupo de cidadãos notáveis, liderado por Bento Quirino e José Paulino, assumiu os serviços públicos. Figuras como José Bueno, Maximiano de Camargo, Alberto Sarmento, Cônego Cipião Junqueira e Padre Neri destacaram-se como verdadeiros heróis.
Através da associação “Protetora dos Pobres”, realizavam visitas domiciliares a doentes abandonados, oferecendo medicamentos, alimentação e conforto de forma imediata e desburocratizada. Um exemplo notável de participação cívica na solução de problemas públicos, algo que parece escasso nos dias atuais.
É pertinente resgatar a memória dessa gente corajosa e o teor de uma carta enviada em 8 de abril de 1889 por José Bueno a Francisco Glicério, um proeminente líder republicano que se encontrava no Rio de Janeiro. Vale lembrar que a República foi proclamada naquele mesmo ano, em novembro.
A carta detalhava a gravidade da situação:
“Glicério: Não imagina como isto está! Agora é que estamos na epidemia. Não sei como nos sairemos dela, me responda esta carta. O José Paulino caiu ontem e não vai bem; o Oto Langaard está pateta, com a família toda doente. Não temos mais vereadores na cidade; não haverá perigo de sofrermos algum desgosto em estarmos levando o serviço como se o José Paulino estivesse presente?”.
Com José Paulino afastado pela febre amarela, o grupo heroico interveio para manter os serviços essenciais da cidade em funcionamento. A preocupação de Bueno residia na possibilidade de retaliações, oriundas de uma má interpretação dos deveres públicos em relação à população que sustenta a administração.
José Bueno prossegue:
“Eu, o Maximiliano e o Luís Fiscal temos autorizado todas as despesas que são necessárias – tudo, tudo, como se o José Paulino estivesse aqui. Essas despesas são altas e acho que temos mesmo autorizado alguma coisa mais do que o estabelecido. Fazemos isso porque não tem aqui camarista a quem se entregue esta população que agora é que sabe o quanto está sofrendo. Não sei quantas casas, das habitadas, não tem um doente, mas sei de muitas que têm 4 e 5, e outras que tem 2, porque já morreram 2 e 3!”.
José Bueno demonstrava conhecimento do cenário político da época, expressando preocupação sobre como o establishment imperial reagiria. Sua apreensão se manifestava na seguinte passagem:
“Se você vir que a Câmara pode sofrer, ou por outra, que o José Paulino pode sofrer algum desgosto pelo que estamos fazendo na ausência dele, você nos diga, porque faremos o José Paulino chamar outro vereador (quem há de ser?) para assumir a direção e responsabilidade disto tudo e nós vamos descansar de ver lágrimas e misérias”.
A situação era realmente desesperadora, conforme descrito:
“Não se escreve o que por aqui vai! Na loja (era a maçonaria em ação) não fazemos outra coisa senão tomar apontamentos e atender, só e exclusivamente, o serviço da peste – é um trabalho tal que, quando chega a noite, a gente está esbandalhado. Calculo em mais de 400 doentes (numa população que acho que não exagero dizendo que é agora apenas de 3.000!). Venha logo sua resposta, para nossa tranquilidade. Adeus. O amigo José Bueno”.
Tempos atrás, a probidade e a seriedade com o Erário, fruto do trabalho de todos, eram valores centrais, em contraste com apropriações indevidas. Atualmente, além de novas epidemias, impulsionadas pelo aquecimento global, observa-se a proliferação do uso de dinheiro público para fins pessoais, indicando uma crescente carência ética no Brasil.
Fonte: Estadão